CRASS

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"GROSSEIRO PELO NOME, PIOR AINDA POR NATUREZA"

(crass by name, even worse by nature)

Assim começa a definição da banda por Steve Sutherland, o maioral da revista Melody Maker em 1979. E continua:"Eles são os últimos sussuros do rock que uma vez brilhou e vibrou rebelião. Eles são tão desagradáveis, arrogantes, ausentes de humor; que vivem em seu mundo preto-e-branco onde palavras são tão somente um monte de slogans chocantes, frutos de sua raiva."

CRASS tem que ser considerado a banda mais ideologicamente engajada e destemida, séria e impetulante, raivosa e controvérsia, chocante e intransigente da história da música uma vez chamada de rock'n'roll, pela primeira vez, em meados de 1954. A verdade é que não há semelhanças ao CRASS em nenhuma parte obscura da história da música. Eles foram os idealistas do punk- os únícos idealistas. Foram os únicos da música pop destinados a divulgar suas idéias e opiniões- não eles mesmos. Foram quem o célebre-cérebro Jello Biafra (vocalista da antiga banda punk americana Dead Kennedys, que, caso você tenha ao menos um pouco de conhecimento no assunto, sabe que ele é considerado o 'pai dos punks') chamou uma vez de 'radicais demais'. Radicais demais para Jello Biafra, pois se você conhece a história deste cara sabe que proporções essa afirmação toma. Foram o fruto ideológico de influências que inspirou e originou bandas como Discharge, Chaos uk, Chron gen, Anti-pasti, Conflict, M.D.C. e várias outras menos conhecidas. Mas diferente dessas bandas, poderiam ser considerados realmente como uma ameaça real à sociedade, e não somente uma revolta passageira juvenil, uma banda de crianças malcriadas.

Vieram da primeira onda punk inglesa, de onde surgiram os Sex Pistols, The Clash, The Damned; mas foram os que introduziram a idéia-base para originar a segunda onda, o ativismo reacionário propriamente dito, a postura militante punk que em raras ocasiões foi levada à sério de novo. Seus integrantes não eram tão inexperientes no ramo como seus contemporâneos das outras bandas, já tinham vivência no mundo anarquista (comunidades) e em movimentos juvenis (hippie). Steve Ignorant era um jovem punk insatisfeito com as direções que o movimento tomava na Inglaterra, e junto ao baterista já não tão jovem assim Penny Rimbaud (o grande mentor da banda), formaram o CRASS. Gravaram as primeiras músicas no iníco de 1977, com Steve Herman na guitarra. Em seguida a artista plástica Gee, amiga de infância de Penny tomou parte da turma. Depois os outros integrantes foram surgindo um a um, enquanto Herman saía da banda: Phil free (guitarra-base) e Andy N. A. Palmer ou B. A. Nana ou Hari Nana (segunda guitarra e uma das 'cabeças' da banda), Eve Libertine e Joy de Vivre (vocais. Libertine fazia a maioria das vozes enquanto Vivre fazia outras poucas, como 'women' e 'walls',...), Mick G. Duffield (Backing vocal e cineastra que consolidou os filmes expostos nos shows), Pete Wright (baixo e vocal visceral em faixas como 'securicor', 'you pay',...). Gee Sus não era menos importante para a banda, pois fazia todas as colagens, montagens e desenhos dos discos e pôsteres (ela praticamente criou o estilo visual do que seria a arte gráfica punk) e os detalhes sonoros nas gravações como piano, flauta, barulhos de rádio, carros, trens, serras-elétricas, etc.

Logo no início foram todos morar na fazenda que Penny tinha em Essex (Gee já morava com Penny). Roubaram, pegaram emprestado ou mendigaram os instrumentos que usariam na banda. Eram expulsos de todos os lugares onde tocavam. Seu som não era algo acessível e pop como o som tipicamente punk, principalmente o som dessa primeira onda. Quando o punk se domesticou, bandas como Pistols e Clash tocavam em programas de tv para a família típica londrina, faziam turnês gorda$ pela Europa, E.U.A. O CRASS então se viu sozinho, de novo, pois conheciam essa história- já tinham vivido e visto o movimento hippie se entregar ao sistema e se tornar uma coisa 'legal'(cool).

Não eram intelectuais ou coisa assim de início, não tinham conhecimento erudito sobre revolução, anarquia e outros conceitos (Steve Ignorant disse uma vez que se viessem falar pra ele sobre Bakunim naquela época, ele provavelmente acharia que este fosse o nome de uma Vodka!), mas tinham a verdadeira vontade de mudança, o ímpeto pela transformação.

A repulsão que tinham às bandas punks do seu tempo era clara: chamavam o Clash de lixo, caça-níqueis, xingavam individualmente todos os integrantes dos Pistols; além dos lugares e ambientes dessas bandas. Eram expulsos dos lugares 'undergrounds' onde as bandas punks tocavam, como o 'Roxy Club' por exemplo. Eram evitados nos círculos punk. Sua honestidade e empenho incomodava aos que estavam lá apenas por brincadeira, que não obstante eram todos. Contestavam o narcisismo visual punk fashion usando roupas absolutamente pretas, tocavam em lugares obscuros, à parte da cena local, com bandas como UK Subs. O público consistia quase somente dos integrantes das bandas que tocavam no dia. E assim foi no início, em 77.

No começo de 1978, a banda passou a usar uma postura mais séria e radical ainda. Não queriam ser simplesmente mais uma banda punk, e sim uma forma ambulante e versátil reacionária. Queriam mudar os rumos da sociedade, e, pela convicção que demonstravam, não parecia de forma alguma pretenção. Sabiam como seria difícil essa tarefa, mas estavam dispostos a dar a vida em nome disso. Passaram a iniciar uma bateria de ações subversivas e de contestação, como panfletagem (inclusive de porta em porta), protestos, publicações de manifestos, zines, jornais, cartões, invasões, boicotes, pichações (foram os responsáveis pela vinculação do símbolo "A" de anarquia para o grande público- antes era somente conhecido por leitores de alguns raros livros sobre o assunto) ... Sempre enfrentaram problemas sérios com a justiça, usavam nomes falsos e nunca se indentificavam, se vestiam rigorosamente de preto e abusavam das leis sempre que fosse possível. Criaram uma comunidade anarquista em Essex (Inglaterra), idealizaram os famosos 'squads', que seriam as moradias dos punks que apropriavam prédios públicos inativos.

Os shows eram atuações ímpares, onde tocavam sempre em ambientes pouco iluminados, com dezenas de faixas e cartazes expondo mensagens como:"Quem eles pensam estar enganando, você?", "Se entupa com seu lixo sexista" ou "Não importa em quem você vote, o sistema sempre vencerá", filmes passados no fundo do palco com imagens surrealistas de guerras, violências, matanças, matadouros, explosões (esses filmes são vendidos coletados num vídeo chamado Christ-The Movie)...

Gravaram o primeiro disco, um EP com 17 músicas, The Feeding Of The 5000 ('alimentando os cinco mil', referindo-se ao medo de não conseguirem vender nem mesmo a prensagem inicial, que é de 5000 discos) pela Small Wonder Records na segunda metade de 1978. O disco era inaldível para a época e havia sido feito da forma menos cara possível: havia sido gravado todo em 'take one' (ao vivo e uma vez só), e tinha a capa toda em preto-e-branco, tudo isso para baratear no máximo a produção. A imprensa então pôde finalmente atacar a banda, algo que já queria há muito tempo. Mas com isso, de alguma forma, acabaram divulgando a banda. CRASS era a única banda que a mídia não mantinha em suas mãos, portanto, a que menos existia para eles. Surgiram então as ofertas de contrato, de várias gravadoras que diziam poder 'vender a revolução CRASS'; todas foram negadas. A primeira música desse disco, 'Asylum', foi censurada já na fase de prensagem, antes mesmo da censura legal; a fábrica negava-se a 'prensar' o disco. O álbum acabou sendo lançado sem a música, mas em seu lugar foi colocado dois minutos de total silêncio, em nome da liberdade de expressão sufocada.

Ian Mckaye pode ter sido ilustre ao idealizar a filosofia 'straight-edge' de respeito aos animais, do vegetarianismo, de sua postura contra as drogas- tudo isso por volta de 81/82. Porém, não tão majestoso quanto o CRASS, que fez tudo isso muito mais clara e concretamente cerca de cinco anos antes, apesar de ficarem sem os devidos créditos. Eles não comiam carne, não usavam produtos de origem animal, Não usavam produtos industrialmente processados- e muito pelo contrário, faziam inclusive o próprio pão. Eles eram realmente independentes, não precisavam de nada do mundo 'civilizado', portanto, não deviam nada a ninguém; eram como uma fortaleza pronta para atacar...

Criaram o conceito de gravadora independente no punk, pois não havia outra forma sincera de publicar seus trabalhos. A gravadora lançava bandas punks que demonstrassem sinceridade e compromisso com suas idéias muito mais que somente com a música. Daí surgiram Conflict, MDC, Captain Sensible, Zounds, Rudimentary Penni, Anthrax(UK), Kukl (a primeira banda da cantora Bjork), etc... Os discos e encartes eram produzidos artesanalmente, na própria fazenda, e vinham com o encarte com todas as letras e o preço-baixíssimo, menos que a metade do preço médiano na época- impresso na capa, para que fosse o mais acessível possível.

O sucesso de sua postura underground até o fim se deve a total repulsa a fama, ao sucesso comercial, a ideologia mercenária. Não davam entrevistas, não permitiam fotos nem filmagens; simplesmente para não terem sua imagem distorcida pela mídia como sempre acontece. Assim, o CRASS manteve seus motivos claros e reputação intacta.

Nunca cobraram nem receberam para benefício próprio, dinheiro por tocar. Certa vez, quando tocaram no primeiro RAR (Rock Against Racism-Rock contra o racismo) da história, disseram estarem dispostos a deixar o cachê em nome da causa. Então os organizadores disseram: "Esta é a causa. Guardem o dinheiro pra vocês..."- resultado: a banda nunca mais tocou para este festival.

No final de 78, com a CRASS Records pronta para lançar discos, decidiram então relançar o primeiro disco, com a música 'Asylum' incluída. A Small Wonder estava cansada das frequentes visitas da polícia e ameaças anônimas. Lançaram então um compacto com 'Reality asylum' (versão extendida de Asylum) num lado e 'Shaved woman' no outro. Venderam esse cada disco por 45p e faliram logo em seguida. Mas o problema não foi só esse: a opinião pública se queixava do conteúdo explícito do disco e a polícia obrigou a retirá-lo das lojas, além do fato da Scotland Yard fazer uma visita a residência da banda. Foram notificados e avisados; como se fossem desistir por isso.

Estavam sempre na lista negra da rádio BBC de Londres, onde apareciam raramente, mas com impacto, cuspindo na política de Tatcher, e na atuação nas Malvinas. O público então ligava para a rádio reclamando e o CRASS era censurado e tirado do ar logo em seguida. Começaram então a trazer para as entrevistas nas rádios vários grupos anarquistas. Essas e outras ações em conjunto com grupos anarquistas levou ao ressurgimento da extinta CND (movimento anarquista Inglês), introduzindo a filosofia a milhares de pessoas. Surgiram a partir daí outros movimentos anarquistas, algo extinto a quase um século no mundo cultural Europeu,- alguns existem até hoje. O CRASS foi quem associou a idéia ANARCO-PACIFISTA ao punk.

Gravaram então em 11/8/79 (num só dia!)The Stations of CRASS (alusão a passagem bíblica Estação da Cruz'). Desta vez, o disco vendeu bem, e então puderam juntar algum dinheiro para os próximos lançamentos, inclusive de outras bandas, além de outras formas de divulgação. A numeração dos discos era baseada na contagem regressiva para o ano de 1984,- o ano apocalíptico de Orwell (planejavam acabar a banda neste ano). Começaram então a fazer show beneficentes em nome de várias causas, como liberar os anarquistas presos em manifestações, ou trabalhadores explorados e desempregados. O envolvimento entre os punks e o anarquismo-ativista crescia cada vez mais. Os shows enchiam mais e mais e haviam fundos de sobra para aplicar em várias causas e projetos.

Depois de The Stations of the CRASS, achavam já haver criticado todos os setores podres do pensamento sujo da sociedade vigente (consumismo, racismo, violência, guerra, religião..), mas faltava um ponto especial, não percebido antes como essencial: a posição social da mulher. Gravaram então Penis Envy (inveja do pênis) em 80, um disco somente com vocais femininos com idéias ultra-feministas (eles diziam ser mais relacionado a questão feminina do que feminista). A imprensa chamava o disco simplesmente de .... , pois consideravam o nome totalmente obsceno e imoral. O disco foi tão bem aceito que, em uma semana atingiu o Top 50 da Inglaterra. Mas, como já se previa, na semana seguinte, não se podia encontrá-lo em lugar nenhum; percebia uma conspiração da indústria fonográfica sobre a banda: as gravadoras pagavam para terem seus discos nas paradas... Descobriram uma nota da EMI onde dizia aos seus departamentos para evitarem contato com o CRASS e para os shoppings evitarem seus discos.

O CRASS, entre 80/82, cansado de tocar em clubes e universidades, passou a fazer turnês por conta própria pelo interior do país, onde se desconhecia inclusive o rock. Acompanhava a banda nessas excursões centenas de pessoas, celebrando o senso mútuo de anarquia e a troca de conhecimentos: esse foi o surgimento da COMUNIDADE CRASS. Tocavam em regiões cada vez mais longíncuas, e cada vez mais eram recebidos com sorissos pelo povo local. Os shows eram sempre em nome de entidades beneficentes. Esses festivais sempre acabam em espancamento, de um lado a comunidade anarquista e do outro a polícia nacional.

Recebiam cartas de apoio de de todo o mundo; da Iugoslávia, África do sul (negros e brancos), expressando como suas mentes foram estimuladas e questionadas pelos discos da banda. Receberam uma carta de um soldado alemão que decidiu largar o exército depois de ouvir a música 'Bloody Revolutions'. Receberam também cartas de um marinheiro inglês que criticava a banda, xingava as ações do CRASS e dizia que eram atitudes típicas de vagabundos as que a banda tomava (uma visão naturalmente fascista). Quando achavam que nunca mais receberiam notícias do referido marinheiro, receberam outra carta onde ele dizia que havia entendido a lógica e os argumentos básicos do CRASS, e disse que estava amargamente arrependido do que havia escrito anteriormente, e que agora pensava de outra forma (agora já com uma visão anarco-pacifista).

Começaram a gravar Christ-The Album (Cristo, o disco) em 81. Esse disco continha músicas que alertavam de uma possível invasão Inglesa em solos estrangeiros. Não deu outra: antes do lançamento do disco (2/82), a Inglaterra entrou em guerra contra as Malvinas. A imprensa esperava uma ação da banda para poder rotulá-los de 'traidores da nação'. Morderam a isca, como tinha de ser, e lançaram então um single com a música ("Como deve se sentir uma mãe de 1.000 mortos?"), uma questão nada agradável a mãe mão-de-ferro Margret Tatcher. Foi a ocasião para serem transformados pelo estado como os inimigos número um do reino Inglês. Tatcher falava publicamente sobre a música, ameaças de morte da polícia federal eram frequentes à banda, o cinismo era a face da imprensa e, os grupos pacifistas, notadamente hippies, que brandavam:"No More WARS" (guerras nunca mais), permaneciam calados. Poucos se uniram a banda nessa causa, mas a mídia tinha sido avisada para deturpar qualquer ação contra a política da guerra. A situação estava difícil. Estavam como em uma arena; a qualquer momento, por qualquer deslize seriam destroçados. O perigo era imenso, e por muitas vezes quase desistiram de tudo.

Foi então que fizeram o primeiro festival 24 horas de show punk na Inglaterra, uma forma particular de contra-ataque. Ocuparam um teatro de uma hora para outra no subúribo de Londres, e lá permaneceram heróicamente por dois dias contra a represária em massa da polícia. Comida e bebida eram de graça, e outras 23 bandas punks tocaram. O slogan 'do it yourself' (faça você mesmo) usado neste show, se tornaria o símbolo de qualquer ação musical underground punk feita pelo mundo.

A época das eleições estava próximas, e a necessidade de uma ação era eminente. Lançaram então  Yes Sir,I Will (sim senhor, eu obedecerei) em 83, um disco que mais parecia um livro falado com música ao fundo, onde se criticava os que aceitavam o poder passivamente, e tinha como mensagem central a máxima "não há autoridade a não ser você mesmo". Queriam acabar com a reeleição de Tatcher de qualquer maneira. Surgiu então a idéia da fita 'tatchergate' (alusão ao caso watergate, de Richard Nixon, ocorrido nos E.U.A. no início dos anos 70). Depois da fita, os poderes ingleses, americanos e soviéticos estiveram em situação delicada; a imprensa do mundo todo comentava o fato. Foi então que um ano depois a banda assumiu o feito, e se tornou então o centro das atenções. Cediam entrevistas para rádios do Canadá à Tókio, eram tratados como uma força política e, pela primeira vez, com certo receio e medo. Foram então vítimas do que seria o último aviso da corte: "Nós temos meios de calar vocês."

A super-exposição à mídia levou ao conflito de interesses dentro da banda; a necessidade da individualidade afogada por tanto tempo em nome da 'comunidade' precisava emergir. Cada um queria seguir seu caminho e se encontrar, pois os ovos já haviam chocado e os recém-nascidos tinham uma estrada inteira à frente. A banda acabou em 1984 depois de uma última apresentação pública. Gravaram "10 notes on a summer's day e Acts of Love" (dez notas num dia de verão e atos de amor), e a coletânia dos singles"Best before... 1984" (melhor antes de... 1984), respectivamente entre 84 e 86. Já não estavam presentes todos os integrantes do grupo durante esses lançamentos, e mesmo assim afirmavam "...continuaremos lutando, individualmente ou em grupo, mas não mais nos limitaremos a manter o formato de banda."

Não há como negar; não há como esconder: CRASS foi a banda que surgiu para mudar, que teve como contexto e motivo de ser uma reforma radical nos pilares nojentos e já podres de nossa sociedade. Ninguém tinha culhões necessários para serem kamikazes como eles foram. CRASS foi a primeira e a única, CRASS abriu as portas para os outros entrarem. Assim como o estilo punk rock tocado até hoje não é nada mais do que uma variação do som que os Ramones criaram em 1975, a atitude punk como um todo não é nada mais do que uma variação do que o CRASS fez, e na imensa maioria das vezes, uma variação ordinária...

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